Mãe pode interromper gravidez de anencéfalo
13 de Abril de 2012
No STF, os votos de quatro ministros encerraram, ontem, o julgamento. No total, só dois foram contrários
Brasília. A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que um feto com anencefalia é natimorto e, portanto, a interrupção da gravidez nesses casos não é comparada ao aborto, considerado crime pelo Código Penal. A discussão iniciada há oito anos no STF foi encerrada ontem após dois dias de julgamento.
Por decisão do Supremo, mulheres que decidem abortar fetos anencéfalos e médicos que provocam a interrupção da gravidez não cometem crime. A decisão defendida por oito dos dez ministros que se posicionaram livra as gestantes que esperam fetos com anencefalia de buscarem autorização da Justiça para antecipar os partos.
Algumas dessas liminares demoravam meses para serem obtidas. E, em alguns casos, a mulher não conseguia autorização e acabava, à revelia, levando a gestação até o fim. Agora, diagnosticada a anencefalia, elas podem ir ao médicos para a realização do procedimento. A anencefalia é uma má-formação fetal que resulta da falha de fechamento do tubo neural (a estrutura que dá origem ao cérebro e à medula espinhal), levando à ausência de cérebro, calota craniana e couro cabeludo.
O Código Penal, em vigor desde 1940, prevê dois casos para autorização de aborto legal: quando coloca em risco a saúde da mãe e em caso de gravidez resultante de estupro. Qualquer mudança dessa lei precisa ser aprovada pelo Congresso.
Por 8 votos a 2, o STF julgou que o feto anencéfalo não tem vida e, portanto, não é possível acusar a mulher do crime de aborto. Dos quatro ministros que votaram ontem – Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Cezar Peluso -, apenas o último votou contra. Os outros três se somaram aos cinco proferidos a favor no primeiro dia de julgamento (Marco Aurélio Mello, Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Cármen Lúcia). Na quarta-feira, Ricardo Lewandowski foi contra a interrupção da gravidez nesses casos. Dias Toffoli declarou-se impedido de votar por já ter se posicionado a favor quando era da Advocacia-Geral da União.
Ayres Britto afirmou que gestantes carregam um “natimorto cerebral” no útero, sem perspectiva de vida. “É preferível arrancar essa plantinha ainda tenra no chão do útero do que vê-la precipitar no abismo da sepultura”, declarou. A maioria dos ministros reconheceu que a saúde física e psíquica da grávida de anencéfalo pode ser prejudicada se levar até o fim a gestação.
Conforme médicos ouvidos na audiência pública realizada pelo STF em 2008, a gravidez de feto sem cérebro pode provocar complicações à saúde da mãe, como pressão arterial alta, risco de perda do útero e, em casos extremos, a morte da mulher. Por isso, ministros disseram que impedir a interrupção da gravidez seria comparável à tortura.
Gilmar Mendes, favorável à possibilidade de interrupção da gravidez, sugeriu que o Ministério da Saúde edite normas que regulem os procedimentos a serem adotados pelos médicos. Uma das propostas é que antes da realização do aborto o diagnóstico de anencefalia seja atestado em laudos emitidos por dois médicos diferentes.
Contra
Só dois ministros votaram contra a liberação do aborto – Ricardo Lewandowski e o presidente do STF, Cezar Peluso. Lewandowski julgou que somente o Congresso poderia incluir no Código Penal uma terceira exceção ao crime de aborto. Peluso, para quem esse foi o julgamento mais importante do Supremo, disse que “o feto portador de anencefalia tem vida”.
A ação julgada foi proposta em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. O relator, Marco Aurélio Mello, acatou a tese de que, juridicamente, não se trata de aborto, mas de antecipação do parto que coloca em risco a saúde física e psíquica da gestante.
Ceará registra 5,3% dos casos de anencefalia do País
Fortaleza. A polêmica sobre se existe ou não possibilidade de vida para fetos anencéfalos vai perdurar na sociedade brasileira além do julgamento do STF. Dados do Ministério da Saúde dão conta de que em 2010, 544 mães brasileiras tiveram a notícia de que esperavam filhos sem cérebro, calota craniana e couro cabeludo. Desse total, 29 foram no Ceará. Isso representa 5,33% das ocorrências registradas no País naquele ano.
O número leva em consideração só bebês anencéfalos que chegaram a nascer. Se forem somados os que morreram ainda no ventre da mãe, o dado sobe para 54 nesse mesmo ano. Elevando o percentual para quase 10% dos casos em relação aos registrados no Brasil.
O total do Estado foi informado pela Secretaria de Saúde do Ceará já que o Ministério da Saúde só possui dados nacionais. Aliás, os registros, alerta o próprio Ministério, não traduzem a realidade. Os números, aponta, são subnotificados tanto no País quanto nos Estados. “Principalmente, no interior, quando a mulher toma conhecimento que espera um filho anencéfalo, busca logo abortar sem entrar na justiça”, informa o órgão.
As que decidem manter a gravidez, mesmo sabendo do problema, muitas vezes se surpreendem quando o bebê nasce. É o caso da professora Ana Cecília Araújo Nunes da Silva. Ela deu à luz a Maria Tereza que teve apenas três meses e 28 dias de vida. A criança sofria de anencefalia e Ana teve a “sentença de morte” da menina aos três meses de gravidez. Quem relembra o drama da família é a filha mais velha, Ana Karine, de 22 anos. “Meus pais, missionários do Shalom, moram atualmente no Chile, com meus irmãos mais novos, mas o período desde o dia que soube até o nascimento e ida de Maria Tereza nunca sairão de minha mente”, lembra.
Segundo ela, a mãe reuniu a família e contou sobre a situação do bebê. Maria Tereza nasceu no sétimo mês de gestação. “Todos estávamos na maternidade, inclusive o padre, que batizou o bebê na hora de seu nascimento. A gente não sabia quanto tempo ela ficaria conosco”, diz.
Para surpresa da família e dos médicos, o bebê recebeu alta no 19º dia e foi para casa. Lá, superou as expectativas: chegou a arrancar a sonda de sua alimentação, sorriu, ia para o braço dos irmãos e tomou leite de colher, além de sugar, mesmo de forma fraca, o peito da mãe.
Mesmo após enfrentar o drama de gerar um bebê anencéfalo, Ana Cecília, decidiu ter outro filho, João Paulo. Ficou grávida aos 39 anos de idade. Hoje, o filho mais novo tem seis anos e muita saúde. “Não sabemos o que houve no caso da Maria Tereza, mas não nos arrependemos de cuidar dela enquanto esteve com a gente”, diz Karine.
Assim como no caso da família Araújo, estudos indicam que não há como evitar a anencefalia. Segundo a neonatologista Maria Juliana Viana, acredita-se que o diabetes aumente os riscos. “Mulheres com a doença têm sete vezes mais chances de terem bebês anencéfalos”. Para ajudar na prevenção, diz, especialistas indicam a ingestão de ácido fólico (vitamina do complexo B) antes e no início da gestação, mas isso não garante a ausência da má formação.
O ginecologista e obstetra Alexandre Calkil Batista, recomenda que o pré-natal comece antes mesmo da concepção, preferencialmente, três meses antes. “Assim, a mulher poderá realizar uma consulta médica completa, bem como todos os exames prévios à gestação”. Além disso, se a mulher que deseja engravidar é obesa, diabética ou hipertensa, é importante realizar um tratamento prévio com a finalidade de alcançar o controle e o equilíbrio antes da concepção.
Brasil ainda tem leis atrasadas, diz advogado
Fortaleza. O julgamento que decidiu pela legalização da interrupção de gravidez de anencéfalos levou oito anos para chegar ao fim. A demora, de acordo com o advogado, mestre em Direito pela Universidade de Coimbra e professor de Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (Unifor), Jório Martins, foi necessária.
“Temos que levar em consideração que o STF tem em mãos vários casos em que se discute o direito à vida e eles merecem muito estudo. Inclusive com a participação do que chamamos ´amigos da corte´ – médicos, biólogos e também religiosos. O Supremo amadureceu a ideia”, defende o professor.
Para ele, se comparado a outros países, o Brasil ainda está muito atrasado no que se refere a leis que envolvem temas polêmicos, como a utilização de material genético em pesquisas e a eutanásia, por exemplo.
“Temos muito o que avançar ainda. No caso da eutanásia, por exemplo, o Conselho Federal de Medicinal editou uma resolução, que foi suspensa. Com um diagnóstico de doença sem cura ou de estado vegetativo, a pessoa ainda não tem o direito de ter sua vontade respeitada, mesmo que tenha isso escrito e registrado”, ressalta, acrescentando que “é preciso desmitificar esses assuntos”, frisou.
Fonte: Diário do Nordeste